quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Os livros

quarta-feira, 31 de agosto de 2011




Era uma imensidão multicolorida de opções. Dezenas, centenas, milhares deles empilhados e arrumados em prateleiras limpas, cheirando a novo.
Olhavam pra mim com suas caras pálidas implorando que, um braço talvez se erguesse em sua direção. Parecia que queriam muito me contar um segredo, ou era eu que queria desvendá-los. Quantos não foram os olhos de tristeza, quando mirei um espécime pequenino alocado no meio daquela confusão e peguei-o em mãos.

Tinha assim uns 15 cm e talvez 80 e poucas páginas bem ralas. Seu olhar agradecido me mirava, como que a desculpar-se por sua finura.
Abriu-se pra mim, com uma rapidez ansiosa, mostrando-me do que se tratava seu interior. Conforme o folheava, ele ia aconchegando-se em minhas mãos, como que num deleite profundo, vibrando em silêncio o fato de ter sido o escolhido, dentre tantos.

Após breve leitura por suas entranhas, já encantado  e decidido de minha escolha, coloquei-o em baixo do braço e segui dentro da imensa livraria, sob os olhos tristes e rebeldes dos outros tantos livros, a me espiar.
Paguei seu valor ingrato, pra vendedora infeliz que me atendia e sai dali convicta de que fazia boa escolha. Teria com quem me divertir ao menos. E o livro, quieto dentro de minha sacola era só suspiros.
Comemorávamos em pensamento aquela paixão recém-iniciada.

No caminho de volta pra casa, entretido com o cotidiano, me deparo com um pequeno comércio.
De longe, não consigo entender bem do que se trata, mas aproximando-me percebo um pequeno sebo. Uma daquelas casas para livros abandonados. Um asilo literário.
Em tom respeitoso, entrei no local certa de que veria ali coisas empoeiradas, feias e sujas que nem se comparavam ao exemplar límpido que carregava sorrindo em minha sacola e que nada me arrancaria a alegria da recente aquisição.

Enquanto explorava aquele lugar, percebia que olhares me seguiam por toda parte. Eles estavam lá também. Os olhinhos de página a me buscar. Notava que os olhares eram mais cúmplices, mais sinceros. Eram mais convidativos e pacientes.
Inquieto, meu livro novo se remexia na sacola.
Sentei-me num banco de madeira velha, num cantinho daquele lugar.
Meus dedos se esticaram e tateavam as maças do rosto de livros antigos, escritores antigos.

Foi quando, por descuido meu ao passear as mãos sobre os livros, caiu um exemplar em meu colo. Sua capa estava velha, um pouco amarelada pelo tempo, mais seus olhos ainda tinham brilho e com sinceridade, me admiravam.
Suas páginas continham grifos, escritas, referências e até mesmo uma declaração de amor escrita assim na capa, mostrando que o velho companheiro tinha conhecido muitos lugares, vivido em muitas moradas.

Seu interior, porém, continuava recheado de conhecimentos que eu desconhecia, e as palavras ao invés de esbranquiçadas, permaneciam negras como piche. Era firme e devia ter ali pelo menos umas 200 páginas guardadas por uma capa bem dura. Apaixonei-me de novo.

Deleitei-me com ele por uma ou duas horas sentada no banquinho de madeira, que passaram despercebidas devido ao nosso enlace tão romântico. Até que o sacudir do livro novo, como o esposo abandonado e traído, me fez tornar a realidade de onde me encontrava.
Paguei o valor insignificante para o vendedor, enquanto pensava abestalhada na grandeza daquela obra, contando o tempo para que sentássemos juntos de novo.
Coloquei o livro na minha sacola, e deixei que o velho e o novo se apresentassem e se conhecessem. O velho, que sentisse novamente o cheiro fresco da impressão nova, o colorido da capa, que lembrasse seus tempos áureos e brancos das páginas novas.
O novo, que aprendesse um pouco sobre paciência, sobre a vida, sobre ser livro, na amplitude da palavra.
Voltei para casa em silêncio, enquanto os olhinhos dos livros se entreolhavam mudos.  
Coloquei os livros sobre a mesa, fechei a porta e fui deitar.

Sonhei que uma multidão de livros estava no pé da minha cama, todos com olhinhos muito bravos a me espreitar.



Ouvindo_Brazil_Django Reinhardt (da trilha sonora de Alguém Tem que Ceder)

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